São poucos aqueles que conhecem intimamente a América Latina e sabem combinar pensamento próprio e ação destacada em prol do seu desenvolvimento. Enrique Iglesias é um dos poucos que souberam aliar os dois predicados no exercício das altas funções que ocupou até agora, merecendo a notoriedade global adquirida. Quais foram os traços que fizeram deste líder um construtor do futuro, capacitado a navegar em mares revoltos a caminho de um porto seguro?
O primeiro traço é a sua origem de um país de demografia reduzida, que tem consciência dos riscos a enfrentar. Sendo este país integrado numa região de outros com significativa densidade populacional, Iglesias incorporou elevada consciência de seus riscos e, por via de consequência, os custos da inação em sua governança.
Uma segunda peculiaridade está em sua trajetória profissional. Em especial, os dezessete anos passados na presidência do BID. Ali conheceu muito de perto os problemas e os desafios das Américas. Ninguém melhor do que um líder com estas características para dissertar sobre as conquistas, tendências e reptos do nosso continente.
Mais um traço de Iglesias é o seu pleno domínio dos temas que lhe cabem no debate das relações internacionais. Isto aflora, de imediato, nas reflexões que pronuncia em cúpulas e demais eventos em que se faz presente o seu notável tirocínio. Ele percorre com desenvoltura, em suas análises, as relações entre os fatores econômicos, sociais, culturais, ambientais e outros temas de grande atualidade. São abordagens cuja abrangência e clareza despertam no ouvinte ou leitor uma reação instantânea de atenção e respeito.
Jaqcues Marcovitch na inauguração da Cátedra José Bonifácio 2014
Iglesias convive e frequenta as principais lideranças da região. Tanto na presidência do BID, como na Secretaria da SEGIB e recentemente, na Cátedra Jose Bonifácio da Universidade de São Paulo, ele convive com múltiplos atores, indo além das Américas para a Europa e a Ásia.
Atuando como poucos líderes internacionais e sem qualquer preconceito, ele dialoga com todos. Percebe rapidamente as especificidades de cada interlocutor, relevando suas correntes ideológicas, filosóficas e possíveis engajamentos. Tornou-se por isso mesmo um interlocutor de todos e de cada um, conquistando respeito geral.
Iglesias não se detém na retórica. Para ele, as métricas fortalecem e tornam as análises mais objetivas, sempre indutoras de metas e resultados imprescindíveis na transformação da realidade.
Do raciocínio ágil ao pensamento mais denso e profundo, Iglesias sabe usar, com grande perícia, a memória histórica. A memória que decorre em boa parte de uma rica e diversificada trajetória como professor de desenvolvimento econômico, diretor do Instituto de Economia da Universidad de la República de Uruguay, Presidente do Banco Central do Uruguai, integrante do Conselho Latinoamericano de Integração (ALADI), e do Instituto Latinoamericano e do Caribe de Planificação Econômica e Social das Nações Unidas (ILPES), ministro de Relações Exteriores do Uruguay; secretário executivo da Comissão Econômica para América Latina e Caribe das Nações Unidas (CEPAL), Secretário Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Fontes Novas e Renováveis de Energia, Presidente da Reunião Ministerial que deu início à Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), Secretário Geral Ibero-americano, após ter sido, durante quase duas décadas, Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Ao longo deste rico percurso intelectual, Enrique Iglesias destacou-se por exercer uma governança moderna. Fez do financiamento, por exemplo, um meio de construção de projetos prioritários para mitigar incertezas nos programas de desenvolvimento regional. Ele soube fazer da lógica do poder um instrumento para alcançar resultados significativos, praticando igualmente a lógica de valores, que combina o rigor econômico, a responsabilidade social, a salvaguarda ambiental e o respeito à diversidade cultural.
Permitam-me destacar, por último, um trecho do seu discurso, em 2012, na abertura da Cúpula Ibero-americana em Cadiz, que a meu ver desenha com aguçada sensibilidade, a leitura de um futuro em condições adversas. Vê-se no escrito a seguir uma certeira percepção de acontecimentos que marcam a década em curso. Ele já interpretava, com dois anos de antecedência, o empoderamento das novas classes médias e, no plano maior das relações internacionais, a aceleração do trânsito da hegemonia econômica do Ocidente para o Oriente, de forma inédita na história do mundo. Não vejo melhor fechamento para esta apresentação. Com a palavra Enrique Iglesias:
“ ... Como siempre ocurrió en el pasado, la crisis será superada. Pero esa superación no nos devolverá al punto de partida. Llegaremos a un nuevo mundo con otra economía basada en el conocimiento y la innovación; a otra sociedad, dominada por crecientes clases medias y con problemas propios de una sociedad informada que hace sentir sus demandas. Y habrá un nuevo sistema de relaciones internacionales, con la aparición de nuevos actores, y un tránsito del poder económico del Occidente al Oriente como nunca conoció el mundo. Encontrar renovados principios de convivência convoca a reforzar el multilateralismo hoy en crisis.”
- Jacques Marcovitch, Universidade de São Paulo, 20/03/2014